Ao maior grau de liberdade corresponderá sempre maior grau de responsabilidade

(A propósito de DL 10/2024 de 08 de janeiro, impropriamente designado Simplex)


Ignoro se existirá a síndrome de TTGPP (tomar toda a gente por parva), mas dado a sua generalizada presença, admito não ser o único a reconhecer a sua existência.

Ouve-se dizer que se terá ido longe demais na simplificação dos procedimentos de controlo prévio municipal em operações urbanísticas, objetivo para o qual uma comissão ad hoc, criada no âmbito do memorando de entendimento entre ordens profissionais de arquitetos e engenheiros, o IMPIC (Instituto Público), associações empresariais do cluster AEC e do setor Imobiliário, trabalhou durante um ano, com o objetivo de encontrar linhas para futuro, que já vem com um atraso de décadas e que importa disciplinar tendo em conta as capacidades reais do setor, sem ficar mais aquém, nem além da realidade delas, ou seja, sem mesquinhez na definição de objetivos, nem ambição excessiva, dando um passo maior do que a perna.

O tema da simplificação interage com a opacidade ou transparência dos sistemas administrativos de controlo prévio municipal, existindo o consenso de que, quanto mais opaco for um sistema, mais fácil será a prática de ilícitos, situação a que a transparência ajudará a combater. Falando do ilícito, teremos de falar de corrupção.

Uma ditadura combate a corrupção num determinado estrato social se considerar a prática indesejável (e é tolerante para estratos privilegiados). Um Estado de Direito não dispõe de meios automáticos que torne a sociedade imune à corrupção, o que poderia até provocar maior mal, como ocorre numa doença autoimune pela reação automática do organismo, mais destrutiva do que a própria doença em si mesmo.

Originário de família numerosa do Alentejo, desde cedo percebi que há quem não resista a pôr a boca no açucareiro, mas a delação não era incentivada, sendo até mal vista e desnecessária, pois quem o faz lambuza-se, terá formigas na almofada.
Desconfio do discurso puritano e de quem apregoa ser sério, pois, geralmente, traz água no bico. Quem vai ao açucareiro é discreto para não dar nas vistas, pelo que quem resiste à tentação não deve apregoar que o não faz, a não ser que o faça.

É do domínio público ter o Pentágono quem venda segredos, havendo esquemas montados para os encontrar e uma justiça célere e implacável para quem for apanhado. Podem assim dormir descansados os que não se vendem, e viver num sobressalto quem arrisca, vendendo a alma por um prato de lentilhas. Entre nós o mais grave de tudo consiste no sobressalto, no pavor e bloqueio de quem é sério, temendo ver o seu nome nos jornais, e o à-vontade de quem o não é, sabendo que nada lhe acontecerá, pois lançou contramedidas à sua volta, assustando os sérios.

Esta situação atinge os jovens arquitetos que trabalham na apreciação de projetos de arquitetura para controlo prévio municipal, condenando todos à demora excessiva dos tempos de apreciação de um processo submetido a controlo prévio municipal, com receio, por parte de quem tem a missão de o apreciar, de deixar escapar um ponto ou uma vírgula que faz parte do texto da legislação vigente, anacrónica e dispersa (que aguarda a publicação de Código da Construção que a reformule e ordene) e que o venha a incriminar, vendo o seu nome afixado nos tabloides sensacionalistas, apontando ato ilícito que não cometeu.
Vendo agora o caso pelo outro lado da história, vive-se no melhor dos mundos, auto classificando-se como facilitadores de soluções livres de constrangimentos, seguindo linhas interpretativas de fronteira entre o legal e o ilegal, o lícito e o ilícito, ressarcidos pelo promotor (que retira vantagem económica) com baixo risco de ser apanhados, mas levando uma vida folgada, preparando-se para o que der e vier, enquanto os ingénuos serão envolvidos sem saber como, nem quando.

Este lado obscuro fica sistematicamente a ganhar, interrogando-me como poderá a Comissão Técnica criada no âmbito do memorando de entendimento entre Ordens profissionais, o IMPIC, Associações empresariais do cluster AEC e do Imobiliário, contribuir para dar a volta a isto. Dizia o meu avô que há sempre várias soluções para resolver um problema, umas melhores e outras piores, mas podemos ter a certeza, de que não existem, nem existirão nunca, soluções só com vantagens.

A responsabilidade civil profissional do autor do projeto de arquitetura pelos atos próprios da profissão (constante do respetivo Termo), será idêntica à que vigorava antes da publicação do DL 10/2024, recaindo sobre ele o risco (e o benefício caso opte por esse caminho) antes da esfera do funcionário municipal. Questiono sobre quem recairá prejuízo, centrando a responsabilidade no arquiteto autor do projeto e não no arquiteto municipal, que avalia e valida segundo o seu critério interpretativo?

Quem não resistir à tentação e não cumpra leis e regulamentos, em benefício dos seus clientes (forma de concorrência desleal em relação a quem cumpre) terá liberdade para o fazer, mas assumirá as responsabilidades inerentes aos seus atos, e só terá razões de queixa quem ficou arredado de formas de enriquecimento ilícito.

Relativamente a todos os outros, que projetam pensando na defesa dos interesses dos clientes, no cumprimento das leis e dispositivos regulamentares aplicáveis, ou daqueles que integram e fazem parte de serviços camarários, empenhados na busca de uma produção de qualidade que garanta melhor ambiente edificado das nossas cidades, em vez de procurar vírgulas e pontos que permitam interpretar as leis de modo mais flexível, entendo que todos beneficiam com o novo regime. 

Note-se o sentido inovador da criação de Comissão Técnica de Acompanhamento da aplicação do diploma. No Reino Unido quando foi criado o regime fiscal do IVA, foi constituído o gabinete de deteção de fraudes, com gente criativa para inventar esquemas de contornar a lei para defraudar os cofres da Coroa. Agia incógnito no Serviço de Finanças criando empresas fictícias que cometiam fraudes para ver se o sistema as detetava. Quando acontecia não ser a empresa detetada pelo sistema, iam à caça de empresas reais com idêntico ADN na sua formação.

Vem do antigo regime o sistema de comissões técnicas em que os membros são remunerados por senhas de presença e não pelo trabalho produzido o que coloca o foco no ato de ser presente e não na prática de tarefas úteis à sociedade, mas espero que esta seja mais de tipo criativo à inglesa (curto para não pentear, como os nossos pais diziam ao barbeiro) apostando no fazer e não no estar presente.

Fernando Bagulho
Arquiteto, membro da direção da APPC

fevereiro 2024