Um entendimento para a simplificação de Procedimentos Urbanísticos

Os sectores do projeto, da indústria da construção, da promoção imobiliária e a regulação do mercado juntaram-se para procurar um entendimento com o objetivo de simplificar a instrução dos procedimentos urbanísticos, um problema reconhecido e atual, que obsta ao desenvolvimento da construção e da reabilitação urbana, cerceando o crescimento e o progresso social em Portugal.

Um Memorando de Entendimento foi assinado, em dezembro de 2022, entre dez entidades representativas destes sectores – ordens e associações profissionais, associações empresariais e um instituto público – na presença da Secretária de Estado da Habitação, dando origem a uma Comissão Técnica para analisar os principais problemas e desenvolver propostas de solução, para apresentação conjunta ao Governo e aos Municípios.

Esta Comissão Técnica tem reunido periodicamente, estudando e desenvolvendo propostas que têm já vindo a ser partilhadas em contactos com o Governo, numa participação ativa e crítica, visando com o seu contributo informar tecnicamente a alteração legislativa entretanto iniciada pelo Executivo. Um dos principais meios práticos preconizados para ultrapassar as dificuldades diagnosticadas – a criação de uma plataforma digital única para instrução uniforme de processos – está neste momento em preparação, tendo a Comissão Técnica apresentado contributos significativos sobre as suas valências e requisitos de funcionamento.


Os processos urbanísticos estabelecem hoje grandes dificuldades na sociedade e na economia portuguesas. Morosidade, complexidade e imprevisibilidade são alguns dos problemas principais, decorrentes de um quadro regulamentar prolífico e desconexo, sujeito a múltiplas interpretações, a que se soma uma miríade de requisitos díspares colocados pelos municípios na submissão dos processos.

A consciência do impacto destes problemas está hoje mais presente no espaço social e mediático, pela crise de oferta na habitação e pelas dificuldades apontadas pelos investidores.
 
Nos sectores do projeto e da construção o diagnóstico é feito quotidianamente pelos técnicos, que se confrontam com múltiplas dificuldades, apercebendo-se da ineficiência e do desperdício de recursos impostos para as ultrapassar. Desse conhecimento direto reportam generalizadamente uma complexidade crescente, dado o desenvolvimento casuístico da digitalização da instrução de processos urbanísticos pelos municípios. Requisitos como designações e numerações específicas dos elementos, formatação de ficheiros informáticos e do modo como se constituem – cores, layers, dimensões, legendas –, diferentes para cada município, são obstáculos que se multiplicam para técnicos que desenvolvem trabalho para diferentes áreas geográficas, como é cada vez mais frequente.

Também os documentos solicitados aos cidadãos e a todos os envolvidos nos processos urbanísticos são objeto de especificações diversas, assinalando-se a necessidade corrente de apresentação à Administração Pública de elementos fornecidos por outros organismos da própria Administração.

Conscientes de todas estas dificuldades e de uma tendência persistente não no sentido de uma simplificação – como poderia resultar das possibilidades introduzidas pelas novas tecnologias de informação – mas para o seu agravamento, um conjunto de instituições dos sectores do projeto, da indústria da construção e da promoção imobiliária, em articulação com o instituto regulador do mercado, procuraram um espaço de diálogo para analisar os problemas e estudar soluções práticas.
 
Ordem dos Arquitectos, Ordem dos Engenheiros, Ordem dos Engenheiros Técnicos, Associação Portuguesa dos Arquitectos Paisagistas, Associação Portuguesa de Projectistas e Consultores, Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção, Confederação Empresarial de Portugal, Associação de Empresas de Construção e Obras Públicas e Serviços, Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas e Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários juntaram-se com esse propósito, criando uma Comissão Técnica para analisar os principais problemas e desenvolver propostas, para apresentação conjunta ao Governo e aos Municípios.

Esta convergência foi simbolicamente assinalada pela assinatura conjunta de um Memorando de Entendimento, em dezembro de 2022, na presença da então Secretária de Estado da Habitação, Marina Gonçalves, na Convenção da Construção realizada no Laboratório Nacional de Engenharia Civil. 

No encerramento deste encontro, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, destacou o caráter singular e oportuno do diálogo confluente entre todas estas entidades, face aos problemas transversalmente detetados, e assinalou a necessidade de transmitir à sociedade civil estas questões, e de lhe apresentar soluções - mais imediatas, aos problemas urgentes, e também mais estruturantes, de médio e longo prazo, numa visão estrategicamente orientada.

A Comissão Técnica criada no âmbito deste Memorando de Entendimento começou, no primeiro trimestre deste ano de 2023, a desenvolver o seu trabalho de análise e estudo de soluções para a uniformização de procedimentos administrativos em operações urbanísticas, reunindo com uma periodicidade mensal, para expor e debater em conjunto os problemas reconhecidos.
 
Alguns estudos de base, como o ‘Relatório de Diagnóstico: Desmaterialização e Uniformização de Processos Administrativos no âmbito de Operações Urbanísticas’, realizado com base no trabalho de campo das secções regionais da Ordem dos Arquitectos, têm permitido ancorar as propostas num conhecimento rigoroso da situação no terreno, de modo a permitir desenvolver uma resposta informada e segura da valia das soluções. Desta análise sobressai a constatação de uma progressiva implementação, por um número crescente de municípios, de meios digitais para a submissão de processos urbanísticos, como plataformas online.

Embora com diferenças sensíveis entre regiões, constatou-se que o período pandémico veio dar um impulso significativo a este processo, evidenciado pelas diferenças registadas entre os dados recolhidos entre 2019 e 2022. No entanto, ao contrário do que estas novas possibilidades tecnológicas poderiam fazer prever, tal não tem contribuído para simplificar e facilitar a instrução dos processos urbanísticos, antes concorrendo para dificultar a tarefa dos arquitetos e demais projetistas, dada a disparidade crescente na definição de requisitos, documentos e elementos de instrução, entre os 308 municípios portugueses.


Como resposta, apontada unanimemente por toda a Comissão Técnica, a criação de uma plataforma digital única para instrução de processos em todo o país é considerada uma via primordial para ultrapassar muitas das dificuldades diagnosticadas, permitindo uniformizar os requisitos e elementos para todos os municípios, simplificando a tarefa dos técnicos, cidadãos e empresas.

Outro instrumento de análise particularmente ilustrativo é o registo em diagrama dos fluxos de tramitação dos processos relativos aos procedimentos urbanísticos, bem demonstrativo da complexidade dos processos, tanto no que respeita à sua instrução pelo requerente e respetivos técnicos, como no que se refere às suas fases de análise pela Administração.


A simples visualização destes organogramas confronta-nos com a evidência do nível de dificuldade dos processos, nas suas fases sucessivas, que compreendem a entrega e análise de múltiplos documentos e elementos. Esta tradução gráfica introduz-nos a uma possibilidade de compreensão da multiplicidade de intervenientes e de diferentes momentos ao longo da tramitação, tal como das possibilidades de falha, incorreção e demora, com cujos resultados tão frequentemente somos confrontados.

Em maio deste ano, a aprovação de uma autorização legislativa ao Governo para simplificação dos licenciamentos em matéria de urbanismo, ordenamento do território e indústria, veio apontar no sentido de uma simplificação com objetivos aproximados aos dos solicitados pela Comissão Técnica. Esta autorização permite ao Governo realizar alterações legislativas que incluem o regime jurídico da urbanização e edificação, o regulamento geral de edificações urbanas e o regime jurídico das autarquias locais, estabelecendo uma oportunidade de concretizar respostas aos problemas já identificados, cerceando o excesso de regulamentação, desconexa e sujeita a múltiplas possibilidades de interpretação.

A proposta de lei nº 77/ XV, que consubstancia a alteração legislativa, altera o modo de instrução dos procedimentos e as situações em que é necessário controlo prévio das operações urbanísticas pelos municípios ou apenas comunicação de informação para a sua realização, com o objetivo de remover obstáculos, desburocratizar e facilitar procedimentos. 

Após uma análise desta proposta legislativa, a Comissão Técnica teve a oportunidade de reunir com a equipa responsável pelo seu desenvolvimento, debatendo os problemas diagnosticados, as principais soluções preconizadas e eventuais alternativas. Questões relativas à qualidade das intervenções e à responsabilidade dos autores dos projetos e das entidades executantes e fiscalizadoras das obras foram apontadas como essenciais no contexto da simplificação, cujos objetivos foram considerados positivos e pertinentes.

A criação de uma plataforma digital única para instrução dos processos – a Plataforma Eletrónica dos Procedimentos Urbanísticos (PEPU) -, prevista na proposta legislativa, foi considerada um passo adequado e decisivo para a agilização e simplificação dos processos urbanísticos, de encontro aos princípios já apontados no âmbito da Comissão.

Para além da sua visão sobre a alteração legislativa no seu conjunto e de diversos aspetos parcelares, apresentada por cada uma das entidades representadas, a Comissão Técnica desenvolveu contributos para a PEPU, dedicando atenção às suas valências e requisitos de funcionamento, e transmitindo as suas conclusões às entidades governamentais com que tem contactado e trabalhado, como a Agência para a Modernização Administrativa, o IMPIC e os serviços das Secretarias de Estado da Digitalização e Modernização Administrativa e da Habitação.

Entre os principais requisitos, a centralização de todos os processos na Plataforma, assim que esteja implementada, constitui um dos princípios fundamentais a considerar. A PEPU deverá constituir o elemento central de preparação de todas as operações urbanísticas, definindo as metodologias práticas, ditando os procedimentos e cumprindo a sua componente operativa. Por outro lado, não menos relevante, deverá assumir uma outra valência, de caráter informativo, para orientação e esclarecimento dos envolvidos nas operações urbanísticas, mesmo nas situações em que é prevista a possibilidade de dispensa de controlo prévio. 

Deverá ainda registar a informação sobre o projeto. O projeto é o instrumento que permite assegurar a qualidade da transformação, na realização da operação urbanística, para a preservação dos valores - ambientais, patrimoniais, urbanísticos, sociais - respondendo às especificidades de cada contexto, para além do mero cumprimento dos critérios mínimos definidos pela legislação. A plataforma deverá prever o registo e acesso, em todas as operações, à informação sobre o projeto, ainda que para ‘arquivamento sem intervenção humana’, conforme previsto para algumas situações pela alteração legislativa. Deve igualmente assegurar a informação sobre os responsáveis e autores, bem como sobre as entidades executantes dos trabalhos de obra e da fiscalização, e respetivos técnicos.

Para o seu funcionamento como instrumento de agilização e simplificação, a supressão de passos dispensáveis nos processos, a interoperabilidade com outras plataformas e bases de dados para criação de mecanismos de automatização que permitam suprimir a entrega de documentos, são componentes indispensáveis, que devem ser criteriosamente previstas, acompanhadas do desenvolvimento de meios de comunicação, tanto internamente como para informação dos envolvidos nos procedimentos.

Deve ainda compreender uma importante componente de georreferenciação, de modo a possibilitar a automatização da prestação de informação e do encaminhamento dos pedidos em função da localização e das especificidades regulamentares a que se encontra condicionada. É esta base informativa georreferenciada que permitirá, no futuro, usufruir das potencialidades da metodologia Building Information Modeling (BIM) para a gestão urbanística e planeamento.

Globalmente, a plataforma deverá assim constituir um serviço de apoio ao cidadão, aos técnicos e demais envolvidos nos atos urbanísticos e na gestão e planeamento urbano. Deve prestar informação de forma transparente, proporcionar o encaminhamento dos interessados, constituir o meio de instrução dos procedimentos urbanísticos, registar a informação técnica, permitir o acompanhamento da tramitação durante o processo e a realização da obra, e constituir depois o recurso informativo sobre as intervenções realizadas.

A preparação da PEPU tem sido um dos objetivos primordiais de trabalho da Comissão Técnica e da sua articulação institucional com organismos governamentais. Para além deste trabalho preparatório, prevê-se no futuro a necessidade e conveniência de monitorizar o seu desenvolvimento e implementação, conduzindo o seu aperfeiçoamento e ajustamento ao longo do tempo.

É de destacar, no entanto, que a criação desta Comissão Técnica, no âmbito do Memorando de Entendimento, constitui um espaço de diálogo com caráter inusitado, que importa relevar e enaltecer. 

Não é frequente entidades diversas procurarem um entendimento para debater problemas comuns e propor soluções com vista ao melhoramento de questões com relevância social. É, por esse motivo, da maior oportunidade preservar e valorizar este território comum, que poderá, eventualmente, dar lugar a um alargamento do seu âmbito de atuação e a novas possibilidades de reflexão e intervenção pública.


Rui Seco
Arquiteto, Ordem dos Arquitetos

outubro 2023